Por que as perguntas mais simples são as mais difíceis de responder? Semana vai, semana vem, essa aí continua martelando a minha cabeça. Não vai ter jeito, vou ter de pegar a nave de volta ao passado…. Lá atrás quando a gente nem era ovo ainda, ou óvulo, puro material genético sem identidade à mercê da lei das probabilidades… Um aglomerado de informação pura. A gente já foi apenas isso: um monte de informação.
A gente ainda é isso (e já é muito!): um monte de informação condensada em forma humana pronta para atuar nesse mundão de meu deus seja lá como for. Bandido ou mocinho, não importa. Os papéis sociais que representamos muitas vezes passam longe da essência.
Mas afinal, o que viemos fazer aqui? Comer, comprar umas roupinhas bonitas e sapatos, claro! e ir embora sem levar nem um real no bolso?
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Quem sou eu? Um nome, um RG, um cargo na empresa, um irmão distante, um pai de três, uma filha do meio, um vizinho carrancudo, um alegre construtor de castelos na areia, um cara esperando o fim de semana para viver, uma amiga para sair, beber, paquerar… Os papéis sociais são muitos mas são apenas isso: papéis.
Durante a vida, vivemos vários papéis nesse teatro do improviso que é a vida na Terra.
E como tudo passa, também vivemos várias mortes, cada vez que deixamos de atuar num desses dramas. Troca de cenários, de figurino, muitas transformações. Algumas vezes, pedimos para sair; outras, somos dispensados sumariamente: “Não preciso mais de você, pode ir!”
Sabe aquelas bandeirolas de festa junina todas penduradas num barbante, soltas ao vento? Vejo cada bandeirola como um dos papéis que tenho na vida. Posso até gostar mais da vermelha ou da roxa. Depois posso mudar de ideia. Cada bandeirola é apenas uma parte de mim. Elas balançam ao vento, se molham, ressecam – papel não dura para sempre! Em algum momento, elas se desmancham e deixam no barbante uma marca, uma impressão.
Vamos colecionando impressões, sejam elas fortes ou quase transparentes. Ao longo da trajetória da alma, vamos acumulando experiências. Dessa vida, de todas as vidas, tudo ligado por um fio condutor, pela consciência infinita que somos. Esses fios se enlaçam às vezes com outros e tocamos a vida de pessoas pelo caminho, ajudando a marcar o barbante delas também. Responsabilidade.
Bonito pensar assim. Bonito pensar que somos infinitos. Tão… tão… sublime.
Então posso fazer todas as bobagens nesse plano de existência que, afinal de contas, não tem tanta importância assim, não é? Ou posso deixar para amanhã tudo o que não tenho paciência de fazer hoje, já que a vida é infinita mesmo… Também posso ser o malvado… São só experiências! Alguém precisa ser o vilão na estória!!! O bem sempre vence no final, mas se não houver com quem brigar, não tem disputa, não tem torcida… Quem vai me julgar no final da linha… já que o final da linha não existe?
Alguns seres não tem escolha. Simplesmente seguem a programação divina que foi criada para eles. Os elementais da natureza são força pura, manipulados para o bem ou para o mal por outros seres: nós e outros colegas sencientes que vagam por aí. Os animais tem no instinto a sua programação de trabalho. Um leão não é “do mau” porque come gazelas – é a sua natureza. Ele não se debate em culpa por ter tirado a vida de um filhote inocente.
Então, o que a gente ganha em ser bonzinho?
Já que temos escolha, podemos escolher um dos lados – na verdade, a cada momento escolhemos. Para mim, a chave está no sentir. Me sentir bem, tranquila com minhas escolhas, sem culpas ou remorsos, sem medos ácidos, sem alucinar depois…
Diferentemente do leão, a gente tem esses sentimentos – culpa, remorso, mágoa e um senso de dever, crenças impostas de “ter de” ser assim ou assado ou o nosso velho companheiro medo que sempre espreita pelas frestas do inconsciente: sou bonzinho porque me sinto bem de verdade assim ou porque tenho medo do castigo?
A gente tem uma natureza rústica escondida nas entranhas que, como o instinto animal, comanda parte da vida. Escapa pelo ladrão, se não ficarmos vigilantes. Em tempos de crise, essas particularidades afloram – na base do “eu primeiro”, um egoísmo inato, agressivo, natural da humanidade.
Temos também uma natureza iluminada serena e plena que mora no coração e nos fala pela intuição divina, suave e sutil. Em horas de crise, essa natureza também aflora e as duas conversam internamente mesmo que nem sempre falem a mesma língua. Uma grita, a outra sussurra.
Nunca seremos 100% bons ou maus nessa terra, somos a mescla de duas forças antagônicas. Quem vai vencer a batalha depende de como integramos esses dois polos dentro de nós, aceitando nossas falhas e imperfeições. Vamos nos olhar com amor e aceitação – da mesma forma que cuidamos do nosso melhor amigo quando ele precisa.
Ciúme, inveja, culpa e raiva… Seria tão bom que não existissem… Contudo, de nada adianta negar a presença deles. Se estão aqui, esse é o meu material de trabalho de hoje – meu caderno e meu lápis afiado.
Lição de casa: olhar para dentro e ver aqueles cantos escuros que me incomodam discreta e disfarçadamente. Acender um holofote e ver – sem medo – o que tem por trás. Normalmente, encontramos uma criança assustada e perdida. Um sobrevivente.
Cada vez que integramos uma dessas partes, ganhamos mais leveza no andar, mais carinho e acolhimento, compaixão, tempo para dedicar ao que nos faz felizes de verdade. Com o tempo, o corpo físico também responde a essas descobertas, se desvencilhando da acidez e toxinas instiladas por sentimentos ruminantes, melhorando a imunidade e o bem-estar.
Trabalhando na paz. Cada passo um novo despertar.
O que a gente ganha com isso? Paz de espírito, sono tranquilo, liberdade, vida plena, satisfação, saber que somos o melhor que podemos ser a cada momento. Por isso a imagem que mais me agrada em termos de evolução espiritual é uma escada – cada degrau alcançado, uma pausa para relaxar e curtir a vida desse novo ponto de vista. Depois, recolhe as forças que a vida é infinita e precisamos ir mais além.
Ou não. Se não quiser mudar, fica aonde está. São suas escolhas.